
A palavra anistia, vinda do grego amnestia — “esquecimento” — nasceu como recurso de sobrevivência política: encerrar guerras internas e permitir que a cidade continuasse de pé. O princípio era claro: sem perdão, não havia paz. Essa lógica atravessou séculos e se instalou no Brasil, onde a anistia virou prática recorrente de governo: mais que justiça, era instrumento de poder.
Já em 1822, Dom Pedro I anistiou os que se opuseram à Independência. Poucos anos depois, a Confederação do Equador também terminou em perdão. Ao longo do século XIX e XX, vieram outras: Revolta da Armada (1893), Revolta da Chibata (1910), Revolução Constitucionalista de 1932, entre tantas. Não à toa, levantamentos falam em 48 anistias federais até os anos 1970 — todas elas funcionaram como válvula de escape em crises políticas e militares.
Mas nenhuma delas se compara à Lei da Anistia de 1979.
Ela foi sancionada ainda durante o regime militar e concedeu perdão a crimes “políticos ou conexos” praticados entre 1961 e 1979. Na prática, significou três coisas:
- Libertação de presos políticos e retorno de exilados;
- Reintegração de direitos políticos para militantes da oposição;
- Perdão a agentes da repressão, gerando o apelido de “autoanistia”.
Aqui cabe uma crítica necessária. A historiografia de viés marxista costuma interpretar a anistia de 1979 apenas como instrumento da classe dominante para manter a impunidade, destacando que torturadores e repressores também foram beneficiados. Esse diagnóstico é verdadeiro em parte, mas reducionista. Ignora que, ao mesmo tempo, centenas de perseguidos políticos puderam voltar ao Brasil, reconstruir vidas, reintegrar-se na sociedade e retomar a luta democrática. Além disso, muitos desses historiadores quase não se interessam pelas anistias anteriores ao regime militar — como se a história política brasileira tivesse começado apenas em 1964. Essa seletividade empobrece o debate, deixando na sombra quase dois séculos de uso recorrente desse instrumento.
É justamente em 1979 que a história ganha contornos decisivos. A crítica marxista tende a enxergar apenas um pacto das elites, mas o fato é que os maiores beneficiados foram os militantes de esquerda que voltaram ao Brasil para reorganizar suas forças e fundar partidos.
Entre eles, destacam-se nomes que, poucos anos depois, seriam protagonistas do Partido dos Trabalhadores (PT):
- Luiz Inácio Lula da Silva, então líder sindical do ABC, ganhou fôlego para articular o movimento que culminaria na fundação do partido em 1980.
- José Dirceu, exilado em Cuba e no México após atuar na luta armada, pôde retornar graças à anistia. Tornou-se presidente do PT e mais tarde ministro-chefe da Casa Civil no governo Lula.
- Dilma Rousseff, militante da VAR-Palmares, presa e torturada nos anos 1970, também foi beneficiada. Décadas depois, chegaria à Presidência da República.
Ou seja: sem a anistia, dificilmente essas lideranças teriam o espaço político para se projetar nacionalmente.
A ironia é evidente. O perdão que, na Grécia, servia para pacificar e reconstruir cidades, no Brasil de 1979 serviu também para fertilizar o solo político da esquerda que fundaria o PT. Enquanto os militares pensavam estar conduzindo uma transição “lenta, gradual e segura”, abriram na prática o caminho para o surgimento de um partido que, em poucos anos, se tornaria a maior força eleitoral do país.
Assim, a anistia de 1979 não foi apenas um gesto de reconciliação: foi a ponte que levou ex-perseguidos ao poder. De perseguidos a governantes, de exilados a presidentes. O esquecimento jurídico transformou-se em memória política — e dela nasceu um projeto de poder que marcou (e ainda marca) profundamente a história do Brasil.
No fim, a lição é dura: no Brasil, anistia nunca é neutra. Ela sempre tem herdeiros. E os herdeiros de 1979 ainda estão no comando da narrativa política nacional.
Referências
BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 28 ago. 1979.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.
GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 18. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.













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